Por Alguns Tragos — Nicole Micaldi

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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2 min readJan 31, 2023

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Colagem de Alexandre Matias

O sabor do café frio e fraco se confunde ao gosto de menta na boca. Acordei antes do despertador. Os olhos profundos e escuros me mostram a coragem que me falta para viver outro dia igual a ontem ou anteontem ou a qualquer dia dos últimos meses.

Me perdi na conta de quanto tempo estou nessa segunda-feira interminável. Déjà-vu nosso de cada dia nos dai hoje o mesmo de ontem. O mesmo cachorro latindo, as mesmas mensagens, a mesma dor nas costas, o mesmo ônibus passando na rua lateral, até meu cabelo acorda sempre da mesma forma. Talvez eu durma sempre do mesmo jeito.

Sento na mesma cadeira de sempre e varro o ambiente com os olhos como de costume. Na descoberta que me traz uma surpresa quase infantil, observo sobre uma pilha de livros no topo da estante um objeto não identificado. Aproximo-me e pego com as pontas dos dedos uma carteira de cigarro. Instantaneamente faço uma lista mental de pessoas que por minha casa passaram nos últimos dias. Ninguém reclamou os cigarros.

Observo a caixa clara com a faixa azul lateral e a foto de um órgão podre. Nunca fumei. Não gosto do cheiro, do gosto ou da ideia como um todo. Num ímpeto enigmático acendo um dos cigarros na boca pequena do fogão.

Sento na cadeira ao lado da janela, intercalo os lábios entre o quente do café e o filtro do cigarro. O trago desajeitado de uma não fumante. O ônibus passa na rua lateral. Na vida útil do cigarro, finjo não ser eu.

Não tenho horário. Esqueço da lista de compras, os relatórios diários, a areia dos gatos por limpar e as correspondência sobre a mesa. Atento-me somente no caminho percorrido pela fumaça expeça dentro de mim. A vida me parece ridiculamente pequena e incurável. Jogo a bituca apagada no lixo da cozinha. O cheiro permanece em meus dedos e cabelos, e me traz um frescor de algo além do creme noturno, que uso há anos.

Guardo a carteira sobre a pilha de livros na estante. Talvez na próxima segunda eu precise ser outra pessoa por alguns minutos. Por alguns tragos.

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