antes que rompa o dia e fujam as sombras — Milena Martins Moura

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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2 min readMay 13, 2022

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Colagem de André de Miranda

todas as noites
com o advento das respostas que se descobrem em atraso
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀o sopro quente do tempo
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀me esquenta a nuca

junto com os feitos que não deviam ter sido
e os maus presságios
que não passaram
de covardia mitificada

todas as noites
a língua do tempo
me lambe o lóbulo da orelha

⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀a direita
quando me deito para a janela
temendo as luzes rápidas no teto

⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀a esquerda
quando me deito para o espelho
e não temo senão a mim

todas as noites
as mãos do tempo
correm nos meus peitos

estão secos e caídos para o lado
como um banquete deixado a apodrecer
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀pela falta da fome nas bocas

todas as noites o tempo enfia em minha boca a sua língua
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀antes que eu consiga recusar

balança a língua
atrás dos meus dentes
onde moram os choros engolidos
e as palavras perigosas

e no fundo da minha garganta
⠀⠀⠀ ⠀sente o ácido
⠀⠀⠀ ⠀⠀do meu medo de morrer
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀misturado à amargura de estar viva

o tempo se esfrega
nas partes minhas
que são só minhas para esfregar
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀todas as noites
e a mim mantém desperta
para que não me esqueça
⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀que todas as noites são noites a menos

⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀todas as manhãs encontro em mim os restos do tempo

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