A Princesa Espantalho — William Eloi

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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8 min readFeb 1, 2023

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Espantalhos — Candido Portinari, 1941

Muitos ainda comentam. Era realmente muito linda. Ninguém havia visto noiva tão bonita assim na cidade desde o dia em que o velho Matias decidiu entrar de braços dados com ela e, num meio sorriso, dizer entre dentes: “Cuide bem do meu anjo, rapazinho”. Sim, era um anjo. Ninguém duvidava. Tanto que não entendiam o que uma garota como aquela fazia ao lado daquele sujeito. Não que Robson fosse uma pessoa ruim. Longe disso. Mas, afinal de contas, existiam partidos bem melhores, donos de muitas posses, filhos dos donos, que dariam tudo para estar ali no altar junto à filha do Velho Matias. O velho bem que tentou desfazer o que classificava como precipitação, loucura. Garantir um futuro melhor para a filha. Porém, Noemi, decidida, respondia sempre com um “papai, eu o amo!” “Tolice”, retrucava o velho. “Esse amor durará tanto tempo quanto o menor de seus caprichos.” Mas Deus escreve certo por linhas tortas. Logo a situação ficou insustentável. Temendo que a filha fugisse de casa ou, coisa pior, que seu nome caísse em desgraça, consentiu com sua bênção aquele casamento que julgava um erro. O velho não teve o que fazer a não ser voltar seus olhos à filha caçula, Noa, então com dez anos de idade. “Tenho certeza que ao menos essa aqui não irá me decepcionar. Tem mais juízo que você”. Onde foi que eu errei?, pensava, enquanto tomava seu café observando-a numa das tardes em que a visitava. O erro foi superproteger a filha? Ora, qual pai não faria de tudo para manter sua menininha a salvo do mundo, ainda mais ao vê-la tão frágil após perder a mãe para um câncer? O Velho Matias travava uma luta severa contra sua consciência, refletia sobre como seus cuidados excessivos com a menina podem tê-la prejudicado… Foi aquele trágico acidente doméstico que Naomi sofreu e que a deixou com setenta por cento do corpo queimado, quando tentava fazer uma surpresa para o marido… No começo ainda tentou culpar o genro. Lógico, se ele estivesse por perto, nada disso teria acontecido! Mas com o tempo viu que era tolice sua responsabilizá-lo. Não podia negar que desde o primeiro momento Robson se mostrou leal e carinhoso com sua filha, embora sempre tenha tratado ele com desprezo. Ainda que fosse um amontoado de carnes repuxadas que a outros causaria repugnância, para o Velho Matias ali diante dele estava sua filha, sua “princesinha”. Porque Deus escreve certo por linhas tortas.

“Não quero, não quero!” Respondia Noa ao pai quando iam visitar Noemi, ainda no início do acidente. “Mas é preciso! É sua irmã! Agora pare de tolices antes que eu lhe dê umas palmadas e lhe bote de castigo!”, respondia o velho. É que Noa não dizia ao pai. Toda vez que visitava sua irmã, à noite, ao dormir, tinha pesadelos. Sonhava com monstro. Tinha a cara de espantalho. Ficavam os dois na sala esperando até que Robson a aprontasse e trouxesse numa cadeira de rodas. Noemi surgia toda enfaixada embaixo de um baby-doll e vestindo uma máscara facial para queimados que só deixava os olhos, boca e nariz expostos. “Olá, minha irmãzinha, vem aqui me dar um abraço!” Aterrorizada, Noa se agarrava à cadeira ao ver a máscara. Igual o espantalho em seus pesadelos. O Velho Matias a beliscava e a empurrava ao mesmo tempo. “Vá lá, Noa, dê um abraço em sua irmã. Você não a ouviu?” Mesmo reticente, Noa obedecia ao seu pai. Noemi colocava os braços em volta da irmã mais nova, que se deixava envolver com repulsa. Querendo que terminasse logo. “Eu te amo, minha irmã.” Noa nada respondia.

Foi só com a morte do Velho Matias que Noa foi morar com Noemi e Robson. Noemi sempre tinha o cuidado para não retirar a máscara na frente da irmã, para não assustá-la, embora às vezes acontecesse. Noa achava Robson engraçado. Sempre a fazia rir. Noa lembrou do pai quando Robson trouxe o bolo de seus dezesseis anos e ele e Noemi cantaram parabéns pra você!

Estava com o lençol à altura do peito quando ele acendeu o abajur, à meia-luz, para então se aproximar na tentativa de lhe dar um beijo, quando ele saiu rapidamente em direção ao banheiro. Claro. Mancharia os lençóis. Deveria estar escorrendo. Correu para se lavar. O que ela também faria, assim que ele saísse do chuveiro. Podia dizer que agora, depois de anos, estava voltando a ser feliz, mesmo a despeito da tragédia em sua vida. Não fosse primeiramente a fé em Deus e a confiança em seu marido, não teria conseguido. “O importante é que você está viva, meu amor”, ele sempre dizia quando ela ainda estava no hospital, toda enrolada em faixas. Foi todo um processo lento e penoso. A retirada de todos os espelhos de casa. A reclusão por anos. Era a Fera, das fábulas que sua mãe lhe contava ainda criança. A Princesa Espantalho, na casa que vivia eternamente de cortinas cerradas e que não recebia ninguém. Porém, Robson nunca a havia abandonado, o que levou o pai dela a sentir vergonha de suas atitudes e pedir perdão ao genro. “Você é linda, meu amor! Linda!”, dizia Robson na frente do velho, e beijava aquele crânio sem um fio de cabelo. Aquele amontoado de carnes deformadas e repuxadas. Foi preciso que o Velho Matias, fazendo uso de seus bens, pagasse tantas cirurgias para que Noemi parecesse com algo semelhante a um ser humano novamente. Passaram-se anos até que voltassem a falar e fazer sexo. Mesmo sedento, Robson nas primeiras vezes não conseguia. Afirmava, porém, que não tinha nada a ver com a sensação de tocar aquele pescoço enrugado. Nada com aquelas sobrancelhas, nariz e boca que não estavam mais ali. Mas Noemi sabia que aquele cansaço, que tantas vezes ele alegava sentir no início, se dava justamente quando ela tirava sua máscara. Mesmo que ele dissesse o contrário. Daí não passou a tirar mais. Mas, nas últimas semanas, Robson vinha entusiasmado, como pensava Noemi. E conseguiram fazer amor! “Meu Deus! Foi… Foi lindo! Foi como na primeira!” E enchia os olhos de lágrimas. “E sempre foi tão meigo!” Não vai doer, eu prometo. Prefiro que algo doa mais em mim do que em você. Nunca havia esquecido. Ótimo, ele saiu do banheiro! Tomou um banho! Agora deve estar indo à cozinha tomar água!

Ele adorava sua risada. Adorava sobretudo quando estava vestida àquela maneira em frente à TV — as pernas abertas, short e camiseta — vendo qualquer bobagem nos finais de semana. Pegou sua garrafa e encheu um copo. Sentou-se ao seu lado. A luz da sala estava apagada. O que a iluminava era apenas a luz que saia do tubo da TV. “Na saúde e na doença” — Robson nunca esqueceu dessas palavras, sobretudo o que Noemi fez para estar ao seu lado. Porém, nunca desejou tanto, e tão ardentemente, que a luz da sala estivesse acesa.

A mão enrugada afaga as suas costas, e ele se virava mais — deve estar cansado, pensou ela — e agora aquilo voltava à frequência de tempos atrás. No café da manhã do outro dia, disse: Amor?

Quê?

Sabe aquela ideia que você deu outro dia de irmos ao shopping? Acho que vou aceitar. Sem a máscara.

Sem a máscara? Não, não acho uma boa ideia.

Mas como assim, não foi você quem disse outro dia?

É, mas estive pensando melhor, não acho legal.

Você tem vergonha de sair comigo?

Você sabe que não…

Tem, tem sim! Você tem vergonha de sair comigo! Pois saiba que tempos atrás eu deveria me envergonhar de sair com você e nunca senti isso! Antes de mim você não era ninguém! Ninguém! E eu sentia orgulho de você porque eu te amava!

Meu amor, eu te amo! Te amo! Eu só quero te poupar…

Robson levanta-se da mesa de café da manhã. Estão só. Vai até Noemi e dá um beijo em seu crânio sem fios de cabelo. As lágrimas caem sobre a pele repuxada. Ela o abraça, molha sua camisa com lágrimas e lhe pede desculpas.

Agora tenho que ir. Senão vou me atrasar. Tchau! Tchau!

Noemi está pensativa. Achando-se egoísta. Dizendo a si mesma o quanto foi dura com Robson, quando ele foi, e é, importante como ninguém. Limpava a poeira que se acumulava nos livros quando uma caixa caiu em seus pés. Quê?! Estimulante sexual? Será que é do Robson? Mas claro!… Pra que Robson quer isso? Será que… Não… Meu Deus… Meu Deus… Não. Joga fora a cartela.

Ele chega tarde da noite. Noemi está deitada. Robson não a acorda. Dirige-se ao banheiro para tomar um banho e depois vai até a cozinha tomar uma água antes de dormir. Noemi tenta dormir. Fingir que está tudo bem. Mas o sono não vem. Então joga o lençol de lado, liga o abajur, onde mesmo à meia-luz revela o horror de estar presa àquele corpo. Abre a porta. Vai até a cozinha. A garrafa gelada está na pia com um copo, mas Robson não está. Não está no banheiro social ou na garagem. Escuta algo rangendo no quarto de hóspedes. Noa trouxe algum namorado pra cá sem lhe comunicar? Pouco provável. Não é do perfil da irmã. Também sabe que ela não gostaria. Encosta o ouvido. “Meu Deus, mas que coisa feia!”, diz a si mesma, sorrindo. Ouve Noa aos sussurros reclamando de um certo desconforto, quando escuta do outro lado da porta — “Não vai doer, eu prometo. Prefiro que algo doa mais em mim do que em você” — e sai dali chorando.

Robson retira o membro manchado de sangue, que lhe suja a mão. Noa vira para o outro lado. Robson sai do quarto e volta ao banheiro para se lavar. No caminho, sobre a estante, vê uma caixa de estimulante sexual. Abre a porta do quarto e vê Noemi de costa, enrolada num lençol. Chorando. Estica a mão em direção a ela, mas desiste de lhe dizer qualquer coisa. Pega a chave do carro e sai. Para no primeiro bar que encontra.

Dois enfermeiros surgem no quarto. Cochicham baixinho enquanto passam o plantão para outro. “O que foi?”

“Um acidente de carro. Ficou preso nas ferragens enquanto o carro pegava fogo. Acabou com o rosto e boa parte do corpo”. O paciente se vira fingindo estar dormindo. Escutara tudo.

“Ah, senhor? Esse aqui é Guilherme, que vem me render agora. Eu trouxe seus remédios e… há alguém… alguém aí fora… insiste muito em falar com o senhor…

Já disse que não quero ver ninguém, diz o paciente.

Senhor?

Quê?

Ah, a moça… a moça que está aí fora… Noemi… é o nome dela.

Noemi entra na sala e encara Robson em silêncio deitado numa cama. O rosto envolto em faixas. Os dois não dizem nada por alguns segundos. Encaram-se. Até que Robson diz:

Deus me castigou. Veio conferir o castigo de Deus?

Não, não é nada disso. Pelo contrário…

É? E o que é?… O que você veio fazer aqui então?

Agora… agora finalmente você poderá me entender… sentir o que eu sinto… Somos duas aberrações… Nascemos um para o outro, Robson. Eu sempre soube disso! Deus atendeu minhas preces! Eu te amo, meu amor. Eu te amo! Agora mais do que nunca.

A Princesa Espantalho encontrava, enfim, seu príncipe.

Revisão: Itaércio Porpino

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